Por JOÃO MIGUEL TAVARES
Criar um novo negacionismo médico em função da orientação sexual é uma péssima ideia.
Nós vivemos num país onde a homossexualidade só deixou de ser crime em 1982, e onde os homossexuais ainda são vítimas de inadmissíveis preconceitos. Mas se lutar contra esses preconceitos é uma obrigação, convém que o combate à discriminação não seja cego, sobretudo quando o assunto em causa é a transmissão do VIH.
Atacar o presidente do Instituto Português do Sangue por este ter afirmado no Parlamento que está definido como factor de exclusão para a dádiva de sangue “ser um homem que tem sexo com homens” não é lutar contra o preconceito — é um reflexo pavloviano que inverte direitos (o direito fundamental em causa não é dar sangue mas sim receber o sangue mais seguro possível), apouca questões científicas e saca da pistola só porque se está a falar de um tratamento diferenciado entre gays e heteros.
Ora, esta questão ou é científica ou não é uma questão. Não se trata aqui de debater política, filosofia, direito de minorias ou sociologia: ou há razões médicas legítimas para considerar os homossexuais masculinos um grupo de risco no que à transmissão do VIH diz respeito, ou a proibição de alguém ser discriminado devido às suas práticas sexuais é obviamente inadmissível.
A questão que deve ser colocada, portanto, é esta: há ou não razões médicas atendíveis para que essa discriminação se mantenha? Havendo uma janela imunológica em que é possível o VIH estar presente sem ser detectado pelas análises, há ou não mais probabilidades de um gay estar infectado do que um heterossexual?
Para estas perguntas não há respostas gay friendly ou unfriendly. Interessa tanto para aqui as convicções políticas e sociais de cada um como eu saber se o cirurgião que me vai operar às varizes vota no CDS-PP ou no Bloco de Esquerda.
É por isso que convém fazer notar aos campeões da antidiscriminação que esta prática do Instituto Português do Sangue está em vigor em inúmeros países ditos civilizados, e que ela só pode ser avaliada através de uma análise quantitativa e qualitativa das infecções por VIH em cada país.
Ora, que eu saiba, os números mais recentes são os que constam no surveillance report VIH/sida de 2013 da OMS, e eles não oferecem dúvidas quanto à prevalência dos contágios MSM (“men who have sex with men”), que o relatório considera ser ainda hoje “o modo predominante de transmissão” do VIH na União Europeia.
Sei também que estes números não coincidem com outros que pululam por blogues e redes sociais, mas a bem da literacia matemática, deixo duas notas:
1) mesmo nos estudos em que o número de contágios heterossexuais supera o número de contágios MSM (sublinhe-se que não há qualquer problema com lésbicas), convém tomar em conta a enorme diferença na dimensão das duas comunidades;
2) o argumento de que os heterossexuais também praticam sexo anal é muito coxo, porque o praticam menos (mais opções à disposição) e porque o fazem no seio de uma comunidade proporcionalmente menos exposta ao VIH.
É claro que se os meios de diagnóstico melhorarem até à eliminação dos falsos negativos, se a qualidade dos inquéritos atingir a perfeição ou se as estatísticas demonstrarem uma diminuição dos contágios MSM que torne as actuais medidas desproporcionadas, a proibição que impede os gays de doar sangue deve ser eliminada.
Mas, em qualquer dos casos, enfrente-se esta questão com dados científicos, e não com bandeirinhas arco-íris. Criar um novo negacionismo médico em função da orientação sexual é uma péssima ideia.
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